sábado, 7 de abril de 2012

A essência da salvação


Precisamos juntar as três cláusulas que afirmam que Deus "nos salvou", "nos chamou com santa vocação" e "trouxe à luz a vida e a imortalidade". Isto explica que a salvação vai muito além do perdão. O Deus que nos "salvou" é também o que, ao mesmo tempo, "nos chamou com santa vocação", ou seja, que nos "cha­mou para sermos santos". O chamamento cristão é uma vocação santa. Quando Deus chama alguém para si, também o chama à santidade. A isto Paulo dera muita ênfase em suas cartas anterio­res. "Deus não nos chamou para a impureza, e, sim, em santificação", porque todos fomos "chamados para ser santos", chamados para viver como povo santo de Deus e separado para ele (1 Ts 4:7; 1 Co 1: 2). Sendo a santidade uma parte integrante no plano de Deus para a salvação, também o é a "imortalidade", da qual escreve no versículo seguinte (v.10). De fato, "perdão", "santi­dade" e "imortalidade" são três aspectos da grande "salvação" de Deus.

O termo "salvação" precisa ser urgentemente libertado do con­ceito medíocre e pobre com o qual tendemos a degradá-lo. "Sal­vação" é um termo majestoso, que evidencia todo o amplo pro­pósito de Deus, pelo qual ele justifica, santifica e glorifica o seu povo: primeiramente, perdoando as nossas ofensas e aceitando-nos como justos ao nos olhar através de Cristo; depois transformando-nos progressivamente, pelo seu Espírito, para sermos conforme a imagem do seu Filho, até que finalmente nos tornemos iguais a Cristo no céu, com novos corpos, num mundo novo. Não deve­mos minimizar a grandeza de "tão grande salvação".

domingo, 24 de abril de 2011

SE TU UMA BENÇÃO

SÊ TU UMA BÊNÇÃO

Uma das grandes conquistas modernas foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Depois das atrocidades da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a ONU nomeou uma comissão para elaborar um documento que assegurasse os direitos da humanidade. No fim de 1948, foi promulgada a primeira Carta contendo os direitos da pessoa humana. A partir dela, muitas outras foram formuladas, garantindo a dignidade humana diante dos abusos e violências que muitos ainda sofrem.

Este movimento mundial criou uma nova consciência na humanidade, principalmente no mundo ocidental. Tornamo-nos cidadãos mais exigentes, consumidores com mais consciência, trabalhadores melhor informados. São direitos reais, necessários à vida e inerentes ao ser humano. São inúmeras as entidades e organizações que hoje lutam pelos direitos humanos, colocando-se a favor dos explorados e marginalizados. São também inúmeras as leis que, desde a Declaração dos Direitos Humanos, foram criadas para garantir a dignidade e o respeito.

Por outro lado, a consciência do direito criou um novo perfil no ser humano. Na medida em que nos tornamos cidadãos mais exigentes e conscientes dos nossos direitos, fomos perdendo a noção da dívida. A luta pelo direito hoje não se restringe apenas ao campo político, social e econômico - foi incorporada à nossa cultura e a todas as esferas da convivência social. Isto tem nos levado a não reconhecer mais nenhuma obrigação para com Deus, pais, mestres, governo e sociedade. A tônica tem sido a seguinte: todos nos devem, e temos o direito de receber.

Este sentimento tira-nos a consciência de que somos protagonistas da História e, lentamente, cria em nós uma atitude passiva de espectadores ingratos. Vamos vivendo como se o mundo, os amigos, a família, a igreja, a sociedade e o governo nos devessem algo. Nossa responsabilidade diminui na mesma proporção que cresce nossa expectativa em relação ao que esperamos dos outros.

Quando Deus chamou Abraão para deixar sua terra, seus parentes e amigos e seguir para um lugar que ele ainda não sabia ao certo onde seria, para ali criar uma nova nação e estabelecer um povo para Deus, deu-lhe uma recomendação nestes termos: "Sê tu uma bênção". Tal imperativo definiu um perfil diferente na vida de Abraão. Ser bênção, e não simplesmente viver à procura dela, faz uma grande diferença.

Muitos hoje perguntam porque a Igreja Evangélica no Brasil, que tanto cresceu nas últimas décadas, não tem promovido as mudanças que imaginávamos iria promover quando tivesse as oportunidades que tem hoje. Arriscaria uma resposta simples: tornamo-nos consumidores religiosos com todos os direitos que um consumidor tem. Ao invés de ser bênção, queremos receber bênçãos; usamos a igreja, a família e a sociedade para alimentar nossas ambições mais mesquinhas. Não somos mais agentes de transformação; viramos espectadores ingratos e exigentes. Ao invés de promover a prosperidade social, transformamo-nos em parasitas sociais, querendo cada vez mais e melhor para nós e não para os outros.

A conversão é a transformação do ser passivo num ser ativo; do paciente num agente; do parasita social num ser solidário; do consumidor religioso num canal de bênção e cura para os outros. A solução para as mazelas sociais que vivemos em nosso país não será conquistada por uma Igreja que exige o melhor para si; que reivindica o direito de ser cabeça e não cauda; que busca a sua prosperidade em detrimento da miséria dos outros. A cura para os dramas e injustiças que afligem o povo brasileiro está numa Igreja que se disponha a sair e ser uma bênção para o país, que se curve e aceite a humilde tarefa de lavar os pés uns dos outros. Uma Igreja que trabalhe para o bem da sociedade, que lute pelos direitos do próximo, cujos membros procurem ser os melhores pais, os melhores filhos, os melhores maridos, os melhores patrões e os melhores empregados.

Quando o Senhor escolheu Abraão e o enviou para ser uma bênção, ele sabia que, ao ser bênção para os outros, encontraria a que buscava. Abraão foi um homem abençoado porque viveu para os outros, e não para si mesmo. A felicidade que busco está na minha capacidade de fazer com que as pessoas que convivem comigo experimentem a felicidade. O chamado cristão é sempre social.

A vida de muitos homens e mulheres de Deus ao longo da História foi ricamente abençoada porque viveram dominados pelo sentimento de dívida. Isso fez deles pessoas gratas, generosas, entregues, corajosas. Não esperavam que os outros viessem consolá-los; eles consolavam. Não viviam exigindo ou reivindicando direitos, mas carregavam um enorme senso de dívida; não viviam aguardando que alguém fosse procurá-los - eles é que procuravam. Eram bênção na vida dos outros e, conseqüentemente, eram abençoados.

Ser bênção para a vida dos outros é criar os meios para que a graça de Deus os envolva trazendo salvação, reconciliação, cura e libertação. É criar os meios para que o cansado encontre alívio, para que o doente ache consolo, para que o perdido seja achado. É usar os dons e talentos que Deus nos deu para criar novas esperanças e para alimentar a fé de outros. "Sê tu uma bênção" é também a recomendação de Deus para cada um de nós. Não busque uma igreja abençoada; seja você mesmo uma bênção para ela. Não espere que seus irmãos sejam uma bênção para você; seja você uma benção para eles. Não fique em casa aguardando algo extraordinário - saia e torne, em nome de Jesus, sua vida e a vida dos outros extraordinária.

À medida em que caminhamos em obediência e submissão, mesmo sem saber para onde estamos indo, mesmo sem ter nenhuma garantia do que vamos encontrar, e se mantivermos uma consciência de dívida, seremos uma bênção. Assim foi com Abraão, com José e também com o apóstolo Paulo - foram abençoados porque abençoaram.

Ricardo Barbosa

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O NOVO ATEU

O NOVO ATEU

Sabemos que existem vários tipos de ateus. Existem aqueles que não crêem em Deus por não encontrarem respostas para os grandes dilemas da humanidade como violência, miséria e sofrimento. Não conseguem relacionar um Deus de amor com o sofrimento humano. Outros não crêem porque não encontram uma razão lógica e racional que explique os mistérios da fé, como a criação do mundo, o dilúvio, o nascimento virginal, a ressurreição, céu, inferno etc. Diante de temas tão complexos que requerem fé num Deus pessoal, Criador e Redentor, muitos não conseguem crer naquilo que lhes parece racionalmente absurdo.

Os dois tipos de ateus já mencionados são inofensivos. Na verdade, são pessoas que buscam respostas, são honestos e não aceitam qualquer argumento barato como justificativa para suas grandes dúvidas. São sinceros e lutam contra uma incredulidade que os consome, uma falta de fé que nunca encontra resposta para os grandes mistérios da vida e de Deus.

No entanto há um outro tipo de ateu, mais dissimulado, que cresce entre nós, que crê em Deus e não apresenta nenhuma dúvida quanto aos mistérios da fé, nem em relação aos grandes temas existenciais. Ele vai à igreja, canta, ora e chega até a contribuir. É religioso e gosta de conversar sobre os temas da religião. Contudo, a relevância de Cristo, sua morte e ressurreição para a vida e a devoção pessoal é praticamente nula. São ateus crédulos. O ateu moderno não é mais somente aquele que não crê, mas aquele para quem Deus não é relevante.

Este é um novo quadro que começa a ser pintado nas igrejas cristãs. Saem de cena os grandes heróis e mártires da fé do passado e entram os apáticos e acomodados cristãos modernos. Aqueles cristãos que entregaram suas vidas à causa do Evangelho, que deixaram-se consumir de paixão e zelo pela Igreja de Cristo, que viveram com integridade e honraram o chamado e a vocação que receberam do Senhor, que sofreram e morreram por causa de sua fé, convicções e amor a Cristo, fazem parte de uma lembrança remota que às vezes chega a nos inspirar.

Os cristãos modernos crêem como os outros creram, mas não se entregam como se entregaram. Partilham das mesmas convicções, recitam o mesmo credo, freqüentam as mesmas igrejas, cantam os mesmos hinos e lêem a mesma Bíblia, mas o efeito é tragicamente diferente. É raro hoje encontrar alguém em cujo coração arde o desejo de ver um amigo, parente, colega de trabalho ou escola convertendo-se a Cristo e sendo salvo da condenação eterna. Os desejos, quando muito, se limitam a visitar uma igreja, buscar uma "bênção", receber uma oração; mas a conversão a Cristo, o discipulado com todas as suas implicações, são coisa que não nos atraem mais.

Os anseios pela volta de Cristo, o desejo de nos encontrarmos com ele e ver restaurada a justiça e a ordem da criação ficaram para trás. Somente alguns saudosos dos velhos tempos lembram-se ainda dos hinos que enchiam de esperança o coração dos que aguardavam a manifestação do Reino. A preocupação com a moral e a ética, com o bom testemunho, com a vida santa e reta não nos perturba mais - somos modernos, aprendemos a respeitar o espaço dos outros. O cuidado com os irmãos, o zelo para que andem nos caminhos do Senhor, as exortações, repreensões e correções não fazem parte do elenco de nossas preocupações. Afinal, cada um é grande e sabe o que faz.

Enfim, somos ateus modernos, o pior tipo de ateu que já apareceu. Citamos com convicção o Credo Apostólico, mas o que cremos não tem nenhuma relevância com a forma como vivemos. A pessoa de Cristo para muitos é apenas mais uma grife religiosa, não uma pessoa que nos chama para segui-lo. O ateísmo moderno se caracteriza pela irrelevância da fé, das convicções, do significado da igreja e da comunhão dos santos.

A irrelevância de Deus para a vida moderna é intensificada pela cultura tecnocrática. Temos técnicas para tudo: para ter um matrimônio perfeito, criar filhos felizes e obedientes, obter plena satisfação sexual no casamento, passos para uma oração eficaz, como conseguir a plenitude do Espírito Santo e muitos outros "como fazer" que entopem as prateleiras das livrarias e o cardápio dos congressos. A sociedade moderna vem criando os métodos e as técnicas que reduzem nossa necessidade de Deus, a dependência dele e a relevância da comunhão com ele. Chamamos uma boa música de adoração, um convívio agradável de comunhão, uma moral sadia de santificação, assiduidade nos programas da igreja de compromisso com o Reino de Deus.

As técnicas não apenas criam atalhos para os caminhos complexos da vida, como procuram inverter os pólos de atenção e dependência. Tornamo-nos mais dependentes de nós do que de Deus, acreditamos mais na eficiência do que na graça, buscamos mais a competência do que a unção, cremos mais na propaganda do que no poder do Evangelho. Tenho ouvido falar de igrejas que são orientadas por profissionais de planejamento estratégico. Estudam o perfil da comunidade, planejam seu desenvolvimento, arquitetam seu crescimento e, de repente, descobrem que funcionam, crescem, são eficientes, e não dependem de Deus para nada do que foi planejado. Com ou sem oração a igreja vai crescer, vai funcionar. Deus tornou-se irrelevante. Tornamo-nos ateus crentes.

A minha preocupação não é simplesmente criticar o mundo religioso abstrato, superficial e impessoal que criamos ou criticar a tecnologia moderna que, sem dúvida, pode e tem nos ajudado. Minha preocupação é com o coração cada vez mais distante, mais abstrato, mais centralizado naquilo que não é Deus, mais dependente das propagandas e estímulos religiosos, mais interessado no consumo espiritual do que numa relação pessoal com Deus.

Como disse, o ateu hoje não é mais aquele que não crê, mas aquele que não encontra relevância para Deus na sua rotina, não precisa da comunhão dele para a vida. A sutileza do novo ateísmo é que ele não precisa negar a fé, apenas cria substitutos para ela. Mantém o crente na igreja, mas longe do seu Salvador. Este ateu está muito mais presente entre nós do que imaginamos.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

MISERÁVEL HOMEM QUE SOU

MISERÁVEL HOMEM QUE SOU

Recentemente, num retiro de nossa igreja, estava ouvindo o conselheiro Werner Haeuser, nosso convidado para aquele encontro, que naquela manhã trazia uma meditação sobre Elias e a grande crise pessoal que viveu depois de ter experimentado uma extraordinária vitória. [N. da redação: Werner Haeuser foi o entrevistado de ECLÉSIA na edição do mês passado]. A meditação de Werner enfocava o problema da vitimação, desta tendência comum do ser humano de fazer-se vítima, de sentir-se acuado pelo mundo, de achar que é o único que sofre, que todos estão conspirando contra ele.

No meio de sua fala, o conselheiro trouxe uma afirmação que me fez perder um pouco a concentração do seu discurso e ater-me mais a esta frase. Disse ele: "O crescimento pessoal começa quando o culpar o outro termina". Comecei a me lembrar das inúmeras justificativas que tenho criado para me justificar dos meus erros e absolver a mim mesmo das minhas responsabilidades. Lembrei das incontáveis vezes em que culpei o governo para justificar da minha apatia social; das muitas vezes que culpei minha esposa e filhos para me absolver do meu egoísmo e insensiblidade e das vezes que culpei irmãos e irmãs para me poupar do incômodo de reconhecer minha incapacidade de amar e perdoar.

Todas as vezes que fiz isso, perdi a oportunidade de crescer, amadurecer e dar um passo a mais na formação do meu caráter. Era apenas mais uma vítima dos erros e pecados dos outros. É uma fórmula comum, bastante usada e que tem lá a sua eficiência. Mas esconde um grande perigo: A paralisia moral.

O que está em questão não é esconder a realidade nem fechar os olhos para os problemas políticos, sociais, familiares ou eclesiásticos. O que se propõe é a necessidade de olharmos com mais coragem e honestidade para nós mesmos, de sermos capazes de assumir os próprios erros e enfrentarmos o pecado com humildade e transparência. É aqui que começamos a dar os primeiros passos em direção a uma maturidade saudável.

O apóstolo Paulo foi uma destas pessoas que resistiu à tentação da vitimação ao afirmar: "Miserável homem que sou." Ele não culpa os outros pela sua incapacidade de não fazer o bem que sabe que deveria fazer. Ele sabe o que é certo, consegue discernir o bem do mal, sabe o que é melhor para ele e os outros, mas mesmo assim, nem sempre consegue optar por aquilo que é verdadeiro, justo e bom. No entanto, mesmo vivendo este dilema, ele não coloca a culpa dos seus erros e pecados no governo, na igreja, na família ou nos outros. Corajosamente - e responsavelmente -, olha para si e reconhece que o problema está nele, no seu pecado, na sua desobediência. Esta postura abre as portas para um processo de crescimento e transformação.

Ao fazer tal afirmação, Paulo não se torna vítima, mas protagonista. A responsabilidade é dele, não dos outros. Esta é a diferença. Paulo não responsabiliza os outros pelas escolhas erradas que fez, pelas oportunidades que deixou escapar, pela formação que deixou de obter, pela influência nociva que sofreu. O cenário principal do seu conflito não era externo, mas interno. A luta entre fazer o bem que conhecia e desejava e se deixar levar pelo mal que não desejava era uma luta da sua alma e Paulo a enfrentou com honestidade e coragem.

Conheço muitas pessoas que gostariam de ver menos televisão e dedicar-se mais à leitura, meditação e oração, mas não conseguem; de trabalhar menos e dispor de mais tempo para a família, amigos e lazer, mas sempre sobra mais trabalho do que tempo; de convidar mais os amigos para sair ou jantar em casa, conversar, mas sempre surge algo mais importante e inadiável para fazer. Sabemos que há mais prazer em cultivar relacionamentos honestos e verdadeiros, em conversar antes de julgar, ouvir antes de falar, servir antes de ser servido, ajudar ao invés de reclamar; mas normalmente nossos relacionamentos não são honestos, julgamos o que não conhecemos, buscamos ser servidos e não servir e, freqüentemente, reclamamos e não ajudamos. Sabemos o quanto é bom lembrar do aniversário de algum amigo, mas não lembramos; que devemos ser mais tolerantes com os erros dos outros, mas não somos; que é bom doar algo que nos é caro, mas não doamos. Diante da inércia e dificuldades internas, da própria alma, responsabilizamos o chefe pela falta de tempo, a correria da vida moderna pela aridez da oração, os inúmeros compromissos pela falta de amizade, e por aí vai. Afinal, não somos nós - são os outros.

O problema que nos difere de Paulo é que não sabemos reconhecer este grande e grave pecado que nos acompanha sempre. Pessoalmente, nunca ouvi ninguém reconhecer o quanto é miserável e concluir dizendo: "Quem me livrará desta morte?" Achamos mais fácil nos justificar nos erros dos outros do que assumir nosso próprio pecado. C. S. Lewis dizia que as pessoas mais ocupadas são na verdade as mais preguiçosas, porque sempre deixam que outros decidam o que devem fazer. É mais fácil viver assim porque também responsabilizamos os outros por tudo o que deixamos de fazer.

Penso que se todos nós, de forma corajosa e honesta, fizéssemos uma declaração como esta de Paulo e reconhecêssemos que somos nós que não fazemos o bem que conhecemos, que optamos pelo mal que não queremos, que o problema está em nós e não nos outros, que precisamos começar por nós um longo caminho de arrependimento e confissão e que necessitamos, desesperadamente, da graça de Deus para libertar nosso corpo deste processo fatal, que vem aniquilando nossos relacionamentos mais íntimos, minando nossas esperanças mais sadias e corrompendo as experiências mais santas e verdadeiras, certamente viveríamos melhor, teríamos famílias mais saudáveis e uma igreja mais madura e acolhedora.

"Miserável homem que sou." É duro reconhecer isto, mas este é o ponto de partida para a vida e a comunhão. É o princípio onde aprendemos que a vida começa em Deus e a comunhão é construída numa dependência constante e sincera dele. Fazendo isto, olharemos para nós antes de olhar para os outros. Estenderemos nossas mãos antes de exigir que alguém estenda as suas para nós. Nos doaremos aos outros antes mesmo que se doem a nós. Cresceremos porque evitaremos culpar os outros pelos nossos erros e pecados.

Que Deus tenha misericórdia de nós.

sábado, 11 de setembro de 2010

Chamados a "ouvir duas vezes"

Chamados a "ouvir duas vezes"

A principal razão para toda traição ao verdadeiro Jesus é que nós ouvimos com exagerada deferência a moda contemporânea, ao invés de escutarmos a Palavra de Deus. A busca por relevância torna-se tão impetuosa que nós sentimos que temos que capitular diante dela, independente do custo. Estamos acostumados a esse tipo de pressão no mundo dos negócios, onde quem determina o produto da firma são os especialistas em marketing, ao descobrirem o que irá vender, o que o público irá comprar. Às vezes parece que o mercado impõe sua regras também à igreja. Com toda prestatividade, nós cedemos ao espírito moderno, tornando-nos escravos da última moda, e até mesmo idó­latras, dispostos a sacrificar a verdade no altar da mo­dernidade. Então a busca por relevância acaba se degene­rando, transformando-se em uma obsessão por populari­dade.

O outro extremo da irrelevância é a acomodação, que é uma covarde e inescrupulosa rendição ao Zeitgeist, o espírito da época. Thielicke foi assaltado por esse perigo, pois ele não conseguia esquecer como é que os assim cha­mados "cristãos germânicos", durante o Terceiro Reich de Hitler, aceitavam e até defendiam os mitos raciais dos nazistas. Ele insistia, portanto, em que a verdadeira teo­logia "sempre implica num debate entre o kerygma e a autocompreensão de uma era... entre a eternidade e o tempo". Ademais, nesse debate "a fé acredita tanto contra como em"; ela nasce em uma reação consciente a idéias correntes. Assim, Thielicke escreve sobre a "estrutura polar" da teologia, na qual um polo é "uma base eterna e superior que se deriva da revelação" e o outro é cons­tituído de "constelações específicas do espírito da época". "A fé", insiste ele, "sempre será um risco ... ela há de implicar, não um porquê, mas um apesar de em face da realidade do humano."

Da mesma forma, Peter Berger, como sociólogo cristão, tem algumas coisas pertinentes a dizer acerca da neces­sidade de se caminhar cautelosamente entre a irrelevância e a acomodação:

Eu gostaria de esclarecer uma vez mais que não estou dizendo que os cristãos não deveriam ouvir as idéias dos outros, ou levar a sério o que acontece no seu contexto cultural, ou participar de lutas políticas do seu tempo. O que me perturba não é o fato de se ouvir como tal, mas, sim, o fato de ouvir com adulação acrítica, se não intenção idólatra — de ouvir, se é que se ouve, de olhos arregalados e boquiabertos de admiração.

E Peter Berger continua dizendo: "Eu acho que simples­mente chegou a hora de dar um 'Basta!' a essa dança em torno dos bezerros de ouro da modernidade." Mais im­portante do que indagar o que o homem moderno tem a dizer à igreja é perguntar o que a igreja tem a dizer ao homem moderno.

O povo de Deus vive num mundo que é frequentemente inamistoso e, certas vezes, declaradamente hostil. Nós vivemos constantemente expostos à pressão para "entrar­mos na forma". No entanto, através de toda a Escritura, somos exortados a uma firme não-conformação, e as ad­vertências para quem cede ao mundanismo são muito sérias. No Antigo Testamento o Senhor disse ao seu povo depois do êxodo: "Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual eu vos levo, nem andareis nos seus estatutos. Fareis segundo os meus juízos, e os meus es­tatutos guardareis..." Mesmo assim o povo disse a Samuel: "... constitui-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para que nos governe, como o têm todas as nações." E, mais tarde, Ezequiel teve que repreendê-los por sua idolatria: "...dizeis: Seremos como as nações, como as outras gerações da terra, servindo ao pau e à pedra." Foi a mesma coisa nos dias do Novo Testamento. A despeito dos mandamentos bem claros de Jesus — "Não vos assemelheis a eles" - e de Paulo - "Não vos conformeis com este mundo" -, a constante tendência do povo de Deus era, e ainda é, com­portar-se "como os gentios" - até que nada mais parece distinguir a igreja do mundo, os cristãos dos não-cristãos, em convicções, valores e padrões

Jonh Stott (Ouça o Espirito Ouça o Mundo)

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Pensemos em nossas próprias vidas

Considerando que Deus o preparou e chamou, Ele também irá prover uma forma de você começar a servir. Por exemplo, você poderá orar em qualquer lugar, a toda hora. Você pode proporcionar ajuda material sem precisar de uma permissão “oficial.” Pode ensinar e aconselhar. Quando você realmente começar á agir na função para a qual Deus o designou, as portas se abrirão diante de você e as pessoas reconhecerão a mão divina em sua vida. Provavelmente tudo começará vagarosamente a princípio e poderá até parecer pequeno e insignificante (Zc. 4:10). Todavia, à medida que você exercitar os talentos que Deus lhe deu, fiel e diligentemente, estes crescerão e você igualmente crescerá.

A vontade de Deus é que sejamos para Ele reino de sacerdotes. Somos todos seus profetas (Ap. 1:5-6 e I Co. 14:1,31). Cada um de nós possui um ministério para ser desempenhado e serviços espirituais para realizar, os quais ninguém mais conseguirá levar a cabo da mesma forma que nós o faríamos. Quando aparecermos perante Ele, teremos de prestar contas de nossas obras (Ap. 2:23). Naquele dia, aquilo que realizamos testificará a nossa verdadeira condição espiritual. Não poderemos dizer que não conhecíamos as necessidades ou que não estávamos qualificados. Lembre-se que o mesmo Deus que operou poderosamente nos apóstolos e profetas vive também em cada um dos Seus filhos. Ele é capaz de fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos se apenas O obedecermos. Precisamos encarar com seriedade essas considerações.

Pensemos em nossas próprias vidas e vejamos se somos trabalhadores realmente ativos para o nosso Rei ou somente passamos de passivos observadores. Teríamos acaso estabelecido uma distância “segura” entre nós e Deus e deixado que outros assumissem a responsabilidade em nosso lugar? Ou será que nos retraímos em decorrência do medo ou da incapacidade humana e permitimos que outros realizassem o trabalho? Em caso positivo, paremos por um momento e arrependamo-nos diante Dele. Entreguemos novamente toda a nossa vida a Deus. Digamos-lhe que, de agora em diante, estamos totalmente dispostos a nos tornar um vaso para o Seu serviço. Depois disso, à medida que Ele nos dirigir, cooperemos com Ele diligentemente em sua vinha.

Autor: David W. Dyer

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A Igreja e as igrejas

A Palavra de Deus nos ensina que a Igreja é uma só. Por que então os apóstolos fundaram igrejas em cada lugar que visitaram? Se a Igreja é o Corpo de Cristo, Ela só pode ser uma. Assim, como podemos falar de igrejas?

O vocábulo igreja quer dizer os chamados para fora . Esse termo é usado duas vezes nos Evangelhos: uma vez em Mateus 16:18 e outra em 18:17. Além disso, achamos esse vocábulo freqüentemente em Atos e nas Epístolas. Nos Evangelhos o termo é usado pelo Senhor nas duas ocasiões, mas é empregado em sentido diferente em cada vez.

“Também Eu te digo que tu és Pedro, e sobre essa rocha edificarei a Minha igreja, e as portas do Hades não prevalecerão contra ela” (Mt 16:18). Que igreja é essa? Pedro confessara que Jesus era o Cristo, o Filho do Deus vivo, e o nosso Senhor declarou que edificaria a Sua Igreja sobre essa confissão, a de que, quanto à Sua Pessoa, Ele é o Filho de Deus, e, quanto à Sua obra, Ele é o Cristo de Deus. Essa Igreja compreende todos os salvos, sem referência a tempo ou a espaço, a saber, todos os que são redimidos no propósito de Deus por meio do sangue derramado do Senhor Jesus, e nasceram de novo mediante a operação do Seu Espírito. Essa é a Igreja universal, a Igreja de Deus, o Corpo de Cristo.

“E, se ele recusar ouvi-los, dize-o à igreja” (Mt 18:17). O vocábulo igreja é usado aqui num sentido bem diferente do de 16:18. A esfera da igreja a que se refere o termo aqui é claramente não tão abrangente como a esfera da Igreja mencionada na passagem anterior. Em 16:18, Igreja é a Igreja que não conhece tempo ou espaço, mas a igreja em 18:17 é obviamente limitada, tanto ao tempo como ao espaço, pois pode-se falar a ela. A Igreja mencionado no capítulo 16 inclui todos os filhos de Deus em todas as localidades, ao passo que a Igreja mencionada no capitulo 18 inclui somente os filhos de Deus que vivem em uma localidade; e é por ser limitada a um só lugar que é possível dizer aos crente que a compõe quais são as nossas dificuldades. É óbvio que a igreja aqui é local, e não universal, pois ninguém consegue falar de uma só vez a todos os filhos de Deus em todo o universo. Só é possível falar de uma só vez aos crentes que vivem num só lugar.

Temos claramente perante nós dois aspectos da Igreja: a Igreja e as igrejas, ou seja, a Igreja universal e as igrejas locais. A Igreja é invisível; as igrejas são visíveis. A Igreja não tem organização; as igrejas são organizadas. A igreja é espiritual; as igrejas são espirituais, contudo físicas. A Igreja é puramente um organismo; as igrejas são um organismo, contudo são ao mesmo tempo organizadas, fato esse comprovado por haver nelas presbíteros e diáconos.

Todas as dificuldades da Igreja surgem em conexão com as igrejas locais, e não com a Igreja universal. Esta é invisível e espiritual; logo, ultrapassa o limite humano, ao passo que aquelas são visíveis e organizadas; logo, são passiveis de ser tocadas por mãos humanas. A Igreja celestial é tão distante do mundo que é possível não ser afetada por ele, mas as igrejas terrenas são tão próximas a nós que, se surgem problemas nelas, nós os sentimos vividamente. A Igreja invisível não põe a prova a nossa obediência a Deus, mas as igrejas visíveis nos provam severamente, pondo nos frente a frente com questões no plano intensamente prático da vida terrena.

Autor: Watchman Nee
Extraído do livro: A Vida Cristã Normal da Igreja – Editora Árvore da Vida

domingo, 8 de agosto de 2010

A COMUNIDADE DA CRUZ

A Comunidade de Celebração

O mesmo Novo Testamento, que contém o rasgo de individualismo de Paulo que diz: "Estou crucificado com Cristo. . . vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim", também insiste em que Jesus Cristo "a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda a iniqüidade, e purificar para si mesmo um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras".1 Assim, o mesmo propósito da sua autodoação na cruz não foi só salvar indivíduos isoladamente, perpetuando a sua solidão, mas também criar uma nova comunidade cujos membros pertences­sem a ele, amassem uns aos outros e zelosamente servissem ao mundo. Essa comunidade de Cristo não seria nada mais do que uma unidade renovada e reunida, da qual ele, como segundo Adão, seria o cabeça. Ela incluiria judeus e gentios em termos iguais. De fato, englobaria representantes de todas as nações. Cristo morreu em so­lidão abjeta, rejeitado por sua própria nação e desertado por seus discípulos; mas, levantado na cruz ele atrairia a todos os homens a si mesmo. E do dia de Pentecoste em diante tem sido claro que a conversão a Cristo significa também conversão à comunidade de Cristo, à medida que as pessoas se voltam de si mesmas para ele, e desta "geração corrupta" à sociedade alternativa que ele está unindo em torno de si. Essas duas transferências — de fidelidade pessoal e participação social — não podem ser separadas.2

O Novo Testamento devota bastante espaço à retratação dessa nova sociedade redimida — suas crenças e valores, seus padrões, deveres e destino. O tema desta seção é a comunidade de Cristo como a comunidade da cruz. Tendo sido trazida à existência mediante a cruz, ela continua a viver pela cruz e debaixo dela. Nossa perspectiva e nosso comportamento agora são governados pela cruz. Todos os nos­sos relacionamentos foram radicalmente transformados por ela. A cruz não é apenas um distintivo que nos identifica, e um pendão sob o qual marchamos; é também a bússola que nos dá direção num mundo desorientado. Em particular, a cruz revoluciona nossa atitude para com Deus, para conosco mesmo, para com as pessoas tanto dentro quanto fora da comunidade cristã, e para com os graves pro­blemas da violência e do sofrimento. Dedicaremos um capítulo a cada um desses quatro relacionamentos.

John Stott

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A PROMESSA DO ESPÍRITO (John R. W. Stott)

A PROMESSA DO ESPÍRITO

A vida cristã é viva no Espírito. Todos os cristãos concordam nisso com alegria. Sena impossível ser cristão, sem falar em viver e crescer como cristão, sem o ministério do gracioso Espírito de Deus. Tudo o que temos e somos como cristãos devemos a ele.

Assim, cada cristão tem uma experiência do Espírito Santo desde os primeiros momentos da sua vida cristã. Para o cristão, a vida começa com um novo nascimento, e o novo nascimento é um nascimento "no Espírito" (João 3:3-8). Ele é o "Espírito da vida", e é ele quem dá vida às nossas almas mortas. Mais que isto, era vem pessoalmente morar em nós, de maneira que a presença do Espírito é o privilégio que todos os filhos de Deus têm em comum.

Será que Deus nos faz seus filhos e depois nos dá seu Espírito, ou será que ele nos dá primeiro seu "Espírito de adoção", que nos torna seus filhos? Podemos responder que Paulo diz as duas coisas. Por um lado, "porque vós sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho" (Gál. 4:6). Por outro lado, "todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção" (Rom. 8:14-15). Não importa como você encara a questão: o resultado é o mesmo. Todos os que têm o Espírito de Deus são filhos de Deus, e todos os que são filhos de Deus têm o Espírito de Deus. É impossível, até inconcebível, ter o Espírito sem ser filho, ou ser filho sem ter o Espírito. Além disso, uma das primeiras obras do Espírito que mora em nós, e, graças a Deus, sempre repetida, é assegurar-nos que somos filhos, especialmente quando oramos. Quando "clamamos: Aba, Pai!", 'o próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus" (Rom. 8:15,16; veja Gál. 4:6). Ele também inundou nosso coração com o amor de Deus (Rom. 5:5). Paulo resume o assunto ao dizer que "se alguém não tem o Espírito de Cristo, este tal não é dele" (Rom. 8.9; veja Judas 19).

Toda esta passagem em Rom. 8 é muito importante, porque demonstra que, no entender de Paulo, estar "em Cristo" e "no Espírito", ter "Cristo em vós" e "o Espírito em vós" são todas expressões sinônimas. Ninguém pode ter Cristo, portanto, sem ter o Espírito. O próprio Jesus deixou isto claro em seu discurso no Cenáculo, quando não fez distinção entre a "vinda" a nós das três pessoas da Trindade. Ele disse "eu virei", "nós viremos" (o Pai e o Filho) e "o Consolador virá" (João 14:18-23; 16:7-8).

Depois que ele vem a nós, passando a residir em nós, tornando nosso corpo seu templo (1 Cor. 6:19,20), começa sua obra de santificação. Em poucas palavras, seu ministério implica tanto em revelar-nos Cristo como em formar Cristo era nós, de maneira que cresçamos firmemente em nosso conhecimento de Cristo e em nossa semelhança com ele (veja, p. ex., Efés. 1:17; Gál. 4:19; 2 Cor. 3:18). Pelo poder do Espírito que habita em nós os desejos maliciosos da nossa natureza decaída são controlados e o bom fruto do caráter cristão é produzido (Gál. 5:16-25). Da mesma forma, o Espírito não é uma propriedade particular, que ministra somente aos cristãos individualmente; ele também une todos no Corpo de Cristo, a Igreja, de maneira que a comunhão cristã é "a comunhão do Espírito Santo", e o culto cristão é adoração no ou pelo Espírito Santo (p. ex., Filip. 2:1; 3:3). Também é ele que chega a outros através de nós, levando-nos a testemunhar de Cristo, e equipando-nos com dons para o serviço para o qual ele nos convoca. Além disso, ele é chamado de "o penhor da nossa herança" (Efés. 1:13,14), porque sua presença dentro de nós é tanto a garantia de que iremos ao céu quanto o antegozo dele. Por fim, no último dia sua atividade será a de ressuscitar nossos corpos mortais (Rom. 8:11).

Esta visão de relance de algumas das principais atividades do Espírito Santo na experiência do cristão deve bastar para mostrar que, do começo ao fim da nossa vida cristã, somos dependentes da obra do Espírito Santo – o Espírito, nas palavras de Pauto, "que nos foi outorgado (dado)" (Rom. 5:5). Eu creio nisto, e espero que todos os cristãos concordem comigo.

terça-feira, 27 de julho de 2010

A OBRA AINDA NÃO SE COMPLETOU (Ricardo Barbosa)

A OBRA AINDA NÃO SE COMPLETOU

Certa vez, vi um adesivo no vidro traseiro de um carro com estes dizeres: "Paciência, Deus ainda não terminou sua obra em mim". Não me lembro se estava ou não irritado no trânsito naquele dia. Possivelmente estava, porque aqueles dizeres chamaram minha atenção e me fizeram ver o quanto minha impaciência para com o ser humano é desproporcional à paciência que espero que tenham para comigo. Mas, sobretudo, o adesivo chamou minha atenção para o processo lento e paciente com que Deus lida com nossas limitações e ambigüidades.

Deus, pacientemente, nos salva, redime e transforma. É um processo lento. Envolve nossas resistências, defesas, medos e incertezas. Queremos crescer, amadurecer, mas temos medo de dar um passo em direção àquilo que não conhecemos, de nos entregarmos nas mãos de Deus sem saber exatamente o que pretende fazer de nós. Tememos renunciar àquilo que nos parece tão seguro e confortável - como os hebreus que, diante dos riscos do novo, desejaram voltar para o Egito. A escravidão é mais segura do que a liberdade. No entanto, Deus segue pacientemente nos conduzindo para a terra da promessa, nos levantando quando caímos, dando força quando nosso vigor acaba, nos corrigindo quando erramos e tratando de nossas feridas quando nos machucamos.

Mas nós somos impacientes. Não suportamos as falhas, cobramos eficiência, criticamos a incompetência e condenamos o erro. O crescimento do outro, para nós, pouco importa. O processo lento e complexo do amadurecimento humano não nos interessa. Somos excessivamente pragmáticos e funcionais em nossos relacionamentos. Precisamos da paciência de Deus e dos outros, mas somos intolerantes. Este descompasso entre a paciência divina e nossa impaciência nos torna pessoas desatenciosas para com aquilo que a graça de Deus está construindo na vida do próximo e na nossa. A vida não é constituída de saltos, mas de passos, na maioria das vezes vagarosos.

A impaciência tem destruído famílias e comunidades, impedido que cônjuges, pais, filhos, irmãos e irmãs vejam aquilo que Deus está fazendo pacientemente na vida do outro. Somos pais impacientes com os filhos, com seus conflitos, sua demora em aprender, suas perguntas embaraçosas, seus gostos duvidosos, seus desejos confusos e hábitos atrapalhados. Somos impacientes com o cônjuge, com suas crises emocionais, frustração profissional, imaturidade espiritual e incapacidade de ser atencioso. Também somos impacientes com nossos pais, com sua dificuldade de compreender, aceitar, ouvir e mudar. E somos impacientes com nossos irmãos e irmãs em sua caminhada de fé, quanto às diferenças teológicas e ideológicas, nas crises existenciais e nos conflitos relacionais.

Se olharmos para a história dos nossos filhos, cônjuge, pais e amigos, vamos perceber que ao longo dos anos vividos houve mudanças, crescimento e transformações; mas num dado momento, ignoramos tudo e somos tomados por uma pressa suicida. Conheço alguns casais que, anos depois de uma separação trágica, reconhecem que se tivessem tido um pouco de paciência, um pouco mais de atenção e cuidado, teriam superado as dificuldades do momento e estariam hoje provando de um relacionamento saudável, maduro e bonito. No entanto, a pressa, a afoiteza egoísta e desumana, fizeram precipitar uma história, abortar um processo e destruir uma esperança.

A maioria dos nossos juízos são prematuros. Nossas avaliações não conseguem ir além de uma visão simplista e temporal. Com facilidade, colocamo-nos como modelo e paradigma sobre a vida dos outros e os classificamos a partir dos critérios que definimos para nós mesmos. Somos cegos para as particularidades e singularidades de cada um. Como resultado de tudo isso, tornamo-nos imediatistas e exigentes, ignorando a natureza única de cada pessoa e o que Deus está fazendo, pacientemente, na vida e na história daqueles que amamos.

Como pastor, em minha limitada experiência, se pudesse traduzir a angústia e aflição de adolescentes, jovens, cônjuges e amigos com quem tenho convivido e escutado em todos estes anos, diria que o que mais desejam é alguém que os ame de forma que sejam compreendidos. De alguém que lhes dê atenção, que pare para ouvir suas histórias, que se preocupe com eles, e não em defender idéias, conceitos e instituições. Alguém que lhes estenda a mão quando caírem, que não os condene precipitadamente e que os trate com humanidade e dignidade.

Paciência é uma virtude divina, um fruto do Espírito absolutamente indispensável na experiência espiritual pessoal e comunitária. É ela que nos possibilita caminhar sem sobressaltos, provar a graça de Deus sem o medo tão comum da rejeição e exclusão. Precisamos dela em nossas famílias e igrejas, principalmente num tempo em que a pressa, a impessoalidade e a cultura do descartável são tão intensas e desumanas. É por isso que Paulo, escrevendo aos filipenses, afirma: "Aquele que começou a boa obra em vós, há de completá-la até o dia de Cristo Jesus". A ação de Deus sobre nossas vidas é pessoal e tem um percurso próprio. Cabe a nós, corpo de Cristo, acolher com paciência uns aos outros e deixar Deus completar a sua obra.

"Paciência! Deus ainda não terminou sua obra em mim". Talvez seria bom colocarmos um adesivo destes em cada um de nós. Seria bom que os pais fossem lembrados disto toda vez que a atitude e reação dos seus filhos não corresponderem àquilo que esperam deles. Que os cônjuges também reconhecessem isto toda vez que o marido ou esposa não correspondessem à expectativa . Que a igreja levasse isto bem a sério, toda vez que olhasse para o lado e visse no outro uma obra inacabada. Que considerasse esta realidade na vida dos seus líderes e pastores. Sejamos pacientes: Deus, com sua infinita misericórdia, continua trabalhando em nós.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Não mude sua natureza se alguém te faz algum mal

Um mestre do Oriente viu quando um escorpião estava se afogando e decidiu tirá-lo da água, mas quando o fez, o escorpião o picou. Pela reação de dor, o mestre o soltou e o animal caiu de novo na água e estava se afogando. O mestre tentou tirá-lo novamente e outra vez o animal o picou. Alguém que estava observando se aproximou do mestre e lhe disse:
-Desculpe-me mas você é teimoso! Não entende que todas as vezes que tentar tirá-lo da água ele irá picá-lo? O mestre respondeu:
-A natureza do escorpião é picar, e isto não vai mudar a minha, que é ajudar.

Então, com a ajuda de uma folha, o mestre tirou o escorpião da água e salvou sua vida, e continuou:

-Não mude sua natureza se alguém te faz algum mal; apenas tome precauções. Alguns perseguem a felicidade, outros a criam. Quando a vida te apresentar mil razões para chorar, mostre- lhe que tens mil e uma razões pelas quais sorrir. Preocupe-se mais com sua consciência do que com sua reputação. Porque sua consciência é o que você é, e sua reputação é o que os outros pensam de você.
E o que os outros pensam… é problema deles.

terça-feira, 20 de julho de 2010

A INVERSÃO DA CONVERSÃO (Ricardo Barbosa)

Os Guinness, um dos profetas da modernidade, escreveu no início da década de oitenta um artigo intitulado Cuidado com a jibóia. Neste artigo, ele comenta os perigos e desafios da modernidade para a fé cristã, e compara estes perigos ao abraço da jibóia que mata suas vítimas estrangulando-as devagar, sem nenhuma pressa. Para ele, a modernidade vem fazendo com o cristianismo aquilo que Nero, Dioclesiano e outros tentaram fazer através da violência e perseguição e não conseguiram. A modernidade vem lentamente estrangulando a fé e o espírito cristão sem que a cristandade se dê conta do abraço da jibóia e apresente qualquer resistência.

Um dos fenômenos modernos que vem me chamando a atenção é o do velho tema da conversão. No passado, a experiência da conversão era caracterizado por uma reforma radical da vida. O convertido era alguém que renunciava o pecado, o mundo e a carne para viver para Cristo, obedecendo a sua Palavra, buscando fazer a sua vontade, negando a si mesmo e se afirmando pela fé em Cristo. Éramos convertidos a Cristo. Na linguagem de Isaías, esta conversão envolvia uma transformação dos nossos caminhos e pensamentos, levando-nos a considerar como superiores e melhores os caminhos e os pensamentos de Deus.

A modernidade vem lentamente mudando este conceito. Eu diria que hoje, o fenômeno mais comum que observo em muitos testemunhos cristãos, não é mais o de nossa conversão a Cristo mas a conversão de Cristo a nós. Digo isto porque o que normalmente ouvimos, nos relatos das experiências de muitos cristãos modernos, são histórias das ações de Deus em suas vidas resolvendo seus problemas, curando suas enfermidades, livrando-os do mal e dos perigos, abrindo portas para novas oportunidades, abençoando seus planos e projetos. Obviamente isto não tem nada de mais, é a expressão mais legítima da presença cuidadosa de Deus em nossas vidas. No entanto, quando tornamo-nos o centro das ações de Deus e julgamos que sua existência só é justificada pelos benefícios que recebemos dele, invertemos a ordem da conversão e, ao invés de sermos convertidos a Cristo, é ele quem se converte a nós, transformando-se numa espécie de "grande mágico" ocupado em tornar nossa vida melhor e mais agradável.

Por outro lado, me chama também a atenção a ausência cada vez maior de testemunhos que expressem as mudanças e transformações da vida e do caráter, que demonstrem a disposição do coração e da alma humana em se deixar moldar pela natureza divina, testemunhos que apontem para uma conversão de nós a Cristo. Somos pecadores, a queda maculou a imagem de Deus em nós, nosso caráter foi corrompido e nos tornamos, por natureza, "filhos da desobediência", rebeldes e egoístas, sem um referencial externo que nos apontasse o caminho de volta para Deus e para a reconstrução da "Imago Dei".

Jesus Cristo, o varão perfeito, o Filho do homem, que manifestou através da encarnação a mais plena e completa humanidade, viveu entre nós para ser o caminho que nos leva de volta ao propósito do Criador, o referencial que precisamos. A conversão, ou numa expressão mais comum entre nós, o "aceitar a Cristo", significa permitir que a vida de Cristo seja agora, pelo poder do seu Espírito, vivida por nós, convertendo-nos e transformando-nos em criaturas novas a fim de afirmarmos como o apóstolo Paulo: "Não mais eu, mas Cristo vive em mim".

Esta afirmação não significa que Paulo havia perdido sua identidade própria, passando a ser uma espécie de marionete ou "zumbi" religioso. O que ele afirma é que foi convertido a Cristo, sua vida foi transformada por Cristo, seus desejos, emoções e vontade, foram e estavam sendo reordenados aos propósitos do Criador. Paulo não estava preocupado se Cristo iria atender todas as demandas de sua vida e ministério, satisfazer suas necessidades ou atender suas exigências pessoais. Paulo estava interessado naquilo que Cristo estava fazendo em sua vida, nas mudanças que o Evangelho havia realizado em seu coração e alma. Paulo mantinha seu olhar sempre fixo em Cristo, deixando para trás tudo aquilo que o mantinha preso no seu passado para experimentar, dia após dia, o poder da ressurreição que fazia dele um novo homem.

A conversão de Cristo a nós é perigosa. É uma inversão que nos coloca numa situação de enorme risco. No salmo 106 há uma advertência contra isto. O povo de Israel foi grandemente abençoado por Deus que os libertou do Egito e dos seus opressores. No entanto, logo se esqueceram de tudo o que Deus lhes havia feito e se entregaram a suas paixões, fazendo o que desejavam. Em meio a esta busca de sua própria realização, lutando pelo seu "direito de ser feliz", fizeram suas orações pedindo para que Deus abençoasse seus desejos desordenados e seus caminhos falsos. Diante disto, o salmista afirma que "Deus lhes concedeu o que pediram, mas fez definhar-lhes a alma". As conseqüências de uma conversão de Cristo a nós podem nos levar ao abismo mais profundo do egoísmo humano e nos afastar da vida liberta e verdadeiramente humana que Cristo nos oferece.

A conversão nunca é o processo de transformar Cristo numa espécie de "gênio da lâmpada", que existe apenas para atender nossas demandas e necessidades. Este caminho inverso pode parecer fascinante, nos dá a sensação de ter à nossa disposição alguém forte e poderoso para nos defender, atender aos nossos interesses, satisfazer nossos desejos e alimentar nosso ego insatisfeito e frustrado. Não nego o amor de Deus e seu desejo enorme de nos abençoar, mas o caminho da conversão continua sendo o da nossa transformação em Cristo, da reconciliação com Deus, da renúncia ao pecado, da sujeição ao senhorio de Cristo, da obediência à sua Palavra e da santidade do caráter. É a transformação da nossa natureza caída na imagem de Deus, é ser cada dia mais parecido com Jesus.

A advertência de Os Guinness é real. A jibóia está aí estrangulando os cristãos, lenta e silenciosamente. A busca pela auto-realização, o narcisismo religioso, a sedução da propaganda, têm invertido o conceito da experiência mais primária da fé cristã. Se começamos pelo caminho inverso, correremos o risco de ver nossa alma definhada. Cuidado com a jibóia!

sábado, 17 de julho de 2010

2ª carta de Carta de Manoel da Conceição ao Companheiro Presidente Lula

2ª carta de Carta de Manoel da Conceição ao Companheiro Presidente Lula
C/C para:
Sr. José Eduardo Dutra – Presidente Nacional do PT
Sra. Dilma Roulsseff – Pré Candidata do PT à Presidência da República
Executiva Nacional do PT
Diretório Nacional do PT

Nobre companheiro presidente Lula,
É com a ternura, o carinho e o amor de um irmão, a confiança, o respeito e o compromisso de um companheiro de classe, das organizações e lutas históricas dos trabalhadores e das trabalhadoras desse país e do mundo que me sinto com a liberdade e o direito de lhe enviar esta 2ª carta, tratando de questões que compreendo ter muito a ver com a responsabilidade do companheiro tanto como agente político das lutas em prol da justiça social para a classe trabalhadora como também na qualidade de um primeiro presidente da república legitimamente forjado nas organizações e lutas desse povo excluído, sofrido, mas que é capaz de realizar o impossível enquanto força social e política organizada e consciente do seu projeto de libertação classista.
Dirijo-me ao companheiro com a minha identidade de trabalhador rural, de sindicalista, de ambientalista, de humanista e de militante e fundador do Partido dos Trabalhadores, o qual comecei a sonhar e trabalhar na sua criação quando ainda me encontrava no exílio, juntamente com honrados e honradas companheiros e companheiras que havíamos sido banidos do nosso país pela intolerância de um governo totalitário e de regime militar.
Porém, minha identidade social, política e classista se origina bem antes da criação do PT e da CUT, instrumentos classistas dos quais me orgulho de ter sido co-fundador, juntamente com o companheiro e um conjunto de honrado(a)s e legítimo(a)s militantes e intelectuais orgânicos da classe trabalhadora.
Na realidade companheiro Lula minha história de luta social e política se originou aqui mesmo no Maranhão, estado do qual sou filho natural com minha matriz étnica negra e indígena.
Agora em julho de 2010 completarei 75 anos de idade. Quando eu era ainda jovem vi meu pai e muitas famílias agricultoras serem massacradas e enxotadas de suas posses por latifundiários, coronéis e jagunços, acobertados e protegidos por um governo oligárquico. Certa vez presenciei um grande massacre de companheiros meus quando estávamos reunidos em uma pequena comunidade rural do interior do Maranhão. Neste dia fomos atacados de forma covarde por um grupo de soldados e jagunços, que sem a menor chance de defesa assassinaram 5 pessoas, dentre elas uma criança que correu prá abraçar o pai caído no chão e foi pego pelas pernas e arremessado contra a parede que a cabeça abriu espalhando os seus miolos, também uma velhinha, que tentou impedir a morte do filho foi cravada de punhal em suas costas, ficando rodando no chão espetada. Eu escapei por puro milagre com um tiro na perna, mas me tornei mais revoltado ainda com a classe latifundiária e jurei perante a comunidade a lutar o resto de minha vida contra os latifundiários e suas injustiças.
Presenciei um segundo massacre em 1959 quando estávamos novamente reunidos em uma comunidade por nome Pirapemas para preparar a defesa de uns companheiros que estavam sendo acusados de ter invadido uma propriedade e roubado umas frutas do sítio. Neste dia chegou um grupo de uns 20 policiais, soldados, tenente, cabos e um sargento. Ao chegarem ao local da reunião o sargento perguntou quem era o presidente da associação, e como foi respondido que não havia presidente o sargento falou: pois então todos são presidentes e vão levar bala. Neste dia foram assassinados sete companheiros e três outros ficaram gravemente feridos.
Minha primeira motivação para a luta era sustentada em pura revolta, ódio dos exploradores da minha família e das famílias camponesas da mesma região que habitávamos. Sem a menor consciência política e dominado pelo ódio eu cheguei a acreditar que a libertação dos trabalhadores de tal estado de sujeição dependeria de um salvador da pátria, de um homem corajoso, de um herói que com o apoio eleitoral dos oprimidos iria por fim a tal dominação. A partir desse entendimento extremamente limitado e de um profundo sentimento de revolta pela violência testemunhada e sofrida, vi surgir na minha ingenuidade uma esperança para salvar a massa camponesa do jugo dos latifundiários apadrinhados pelo poder da oligarquia viturinista que comandava o estado do Maranhão. O nome dessa esperança era José Sarney.
Com um discurso muito bem elaborado e com a radicalidade de um revolucionário Sarney prometia exatamente o que nós camponeses queríamos ouvir: um Maranhão novo e livre de oligarquia, reforma agrária, punição dos crimes cometidos contra as famílias camponesas e indenização dos prejuízos a elas causados pelo gado dos fazendeiros. Eu acreditei no discurso do cidadão e me tornei um aguerrido cabo eleitoral, andando a cavalo em todas as comunidades da região fazendo sua campanha. Resultado, com uma grande adesão popular, elegemos o José Sarney em 1965 para ser o governador do Maranhão. Nessa época eu já era presidente do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Pindaré Mirim, que congregava trabalhadores rurais de toda a grande região do Pindaré. Mesmo sem ainda ter uma sólida consciência de classe eu já havia sido preso e espancado severamente pela polícia da ditadura militar. Foi por conta dessa perseguição que eu passei a acreditar nas promessas do Sarney que caso fosse eleito iria ser uma força aliada dos trabalhadores contra a repressão da ditadura militar.
No dia 13 de julho de 1968 o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Pindaré Mirim havia convocado uma reunião da categoria para receber a visita de um médico para tratar questões relacionadas à saúde dos associados e associadas. O Prefeito do município na época mandou informar que iria fazer uma visita ao sindicato neste mesmo dia. Por volta das 10 horas da manhã chegou um pessoal dizendo que queria falar com o presidente do sindicato. Quando eu apontei na porta fui recebido por tiro de fuzil que estraçalhou minha perna. A ação e os disparos foram efetuados pela polícia militar. Outros companheiros também foram atingidos por bala, mas felizmente não houve morte. Eu fui levado aprisionado e jogado na cadeia sem receber nenhum tratamento no ferimento, o que levou minha perna a gangrenar e ter que ser amputada.Sarney se encontrava em viagem para o Japão e quando retornou manifestou desconhecimento da questão e mandou seus assessores manter contato comigo, oferecendo apoio para a minha família, uma perna mecânica, uma casa e outras ofertas, desde que eu me tornasse um defensor do seu governo. Eu respondi que não estava preso por ser bandido, que minha perna tinha sido arrancada por bala da própria polícia militar do estado sob seu governo. Portanto, minha perna era responsabilidade da classe que eu representava, minha perna era a minha classe. Desde então eu passei a ser considerado um inimigo do Estado militar, passando a ser alvo de permanente perseguição. Fui preso 9 vezes e submetido às piores torturas que um ser humano é capaz de suportar. Vi muitos de meus companheiros e companheiras serem torturados e morto(a)s por ordem do governo militar do qual Sarney se tornou parte num primeiro momento como governador do Maranhão e posteriormente como Senador Biônico. Vale ressaltar que foi no primeiro governo da nascente oligarquia Sarney, que foi promulgada a Lei Estadual 2.979, regulamentada pelo Decreto 4.028 de 28 de novembro de 1969, a qual facultava a venda de terras devolutas sem licitação a grupos organizados em sociedade anônima. Essa lei foi o maior instrumento de legalização da grilagem das terras do Maranhão, particularmente na região do Pindaré (ASSELIN, 1982, p. 129). Essa grilagem promoveu a expulsão das famílias agricultoras de suas posses e a migração de milhares de famílias camponesas maranhenses para outros estados.
Eu escapei com vida, embora mutilado e com seqüelas físicas e psicológicas profundas, por conta da solidariedade da anistia internacional, das igrejas católicas e evangélicas, da AP como principal mobilizadora dos apoios e até do Partido Comunista do Brasil que na ocasião fez uma ampla campanha internacional pela preservação da minha vida.
Finalmente, fui exilado na Suiça de onde continuei denunciando as atrocidades da ditadura militar nas oportunidades que tive de viajar por vários países europeus. Foi também no exílio juntamente com companheiros refugiados que começamos a discutir a idéia já em discussão no Brasil de criação do Partido dos Trabalhadores e também de uma central sindical.
Meu companheiro Lula, hoje vivemos um novo momento na história do Brasil; aquelas lutas dos anos 50, 60, 70, 80 e 90 não foram em vão; tivemos prejuízos enormes, pois muitas vidas foram ceifadas pela virulência dos detentores do poder do capital; porém, temos um saldo expressivo de vitórias; hoje temos um partido que se tornou a maior expressão política da classe trabalhadora na América Latina; temos o melhor presidente da história desse gigantesco país, que ironicamente é um trabalhador operário e nordestino, que assim como eu quase não teve acesso a estudos escolares. Eu confesso a você que sinto um imenso orgulho de ter participado desde os primeiros momentos da construção dessa grandiosa e ousada empreitada. Porém, companheiro presidente, ultimamente eu tenho vivido as maiores angustias que um homem com minha trajetória de vida é capaz de imaginar e suportar. Receber a imposição de uma tese defendida pela Direção Nacional do meu partido e até onde me foi informado pelo próprio companheiro presidente de que o nosso projeto político e social passa agora pelo fortalecimento da hegemonia da oligarquia sarneysta no Maranhão. Eu sei do malabarismo que o companheiro presidente tem precisado fazer para garantir alguma condição de governabilidade, porém, sei do alto custo que é cobrado por esses apoios conjunturais, e que nosso governo vem pagando a todos esses ônus. Companheiro, tudo precisa ter algum limite e tal limite é a nossa dignidade. O que está sendo imposto a nós petistas do Maranhão extrapola todos os limites da tolerância e fere de morte a nossa honra e a nossa história. Eu pessoalmente, há mais de 50 anos venho travando uma luta contra os poderes oligárquicos e contra os exploradores da classe trabalhadora neste país. Por conta disso perdi dezenas de companheiros e companheiras que foram barbaramente trucidados por essas forças reacionárias. Como que agora meus próprios companheiros de partido querem me obrigar a fazer a defesa dessas figuras que me torturaram e mataram meus mais fieis companheiros e companheiras. Vocês podem ter certeza que essa é a pior de todas as torturas que se pode impor a um homem. Uma tortura que parte dos próprios companheiros que ajudamos a fortalecer e projetar como nossos representantes no partido e na esfera de poder do Estado, na perspectiva de um projeto estratégico da classe trabalhadora. Estou falando do fundo de minha alma em honra à minha história e à de meus companheiros e companheiras que foram assassinadas pelas forças oligárquicas e de extrema direita neste país.
Estou animado para fazer a campanha da companheira Dilma, assim como para fazer uma aguerrida campanha política em prol do fortalecimento do PT no Maranhão e para construir um projeto político alternativo à oligarquia sarneysta, juntamente com os partido do campo democrático e popular na Coligação PT, PCdoB e PSB. Esta foi a tática vitoriosa em nosso encontro estadual realizado nos dias 26 e 27 de março, que aprovou por maioria de votos, da forma mais transparente possível e cumprindo todos os preceitos legais o nome do companheiro Flávio Dino para candidato dessa aliança legitimamente de esquerda e respaldada pelas mais expressivas organizações da classe trabalhadora deste estado que publicamente se manifestaram, a exemplo da Federação dos Trabalhadores na Agricultura – FETAEMA e a CUT. Assim, penso que estamos sendo coerentes com a nossa história e identidade classista. Portanto, estou fazendo este apelo ao mais ilustre companheiro de partido e confessando em alto e bom som que não aceitarei sob nenhuma hipótese a tese de que nestas alturas de minha vida eu tenha que negar minha identidade e desonrar a memória de meus companheiros e companheiras que foram caçados e exterminados pela oligarquia e os detentores do capital no Maranhão, no Brasil e mundo inteiro.
Lamento e peço desculpas se este meu posicionamento desagrada o companheiro e a Direção Nacional do PT, mas não posso me omitir diante de uma tese destruidora de nossa identidade coletiva e que representa a negação de tudo que temos afirmado nas nossas palavras e ações. Espero poder contar com a solidariedade e compreensão do meu histórico companheiro de utopias e lutas.
Atenciosamente,
Manoel da Conceição Santos - Membro Fundador do PT e primeiro Secretário Agrário Nacional
Imperatriz - MA, 03 de junho 2010